12 de set. de 2009

Carlo Tursi

Dom Helder Camara e a espiritualidade do conflito


Carlo Tursi é teólogo católico e membro da recém-eleita coordenação arquidiocesana de CEBs, em Fortaleza, Ceará
Fonte: Adital




"Não pensem que eu vim trazer paz à terra...!" (Mt 10,34)

Hoje, somos todos reféns daquilo que agrada às multidões. E nada agrada-lhes mais do que o discurso da "paz". Parece que, depois de três décadas de lutas, manifestações, punhos erguidos, discursos inflamados e palavras de ordem gritadas, a "turma" se cansou e procura agora profetas e sacerdotes(-cantores?) de "fala mansa" que prometem bonança e serenidade, de preferência sem ninguém ter que suar a camisa. "Felizes os mansos" (Mt 5,5) e - sobretudo - os sorridentes, pois o grande público irá escutá-los. Toda palavra mais grossa, discussão mais acalorada, qualquer dissenso ou polêmica são ojerizados; preza-se viver em um ambiente harmônico, tranquilo e isento de perturbações. Se existem conflitos - e não há como negar sua existência, nem na sociedade, nem na Igreja - , há de se silenciar acerca deles, pois viver um conflito, ainda mais às vistas do público, seria hoje desastroso para a imagem de qualquer instituição ou comunidade. E é assim que mantemos - nos lares, nas igrejas, nas repartições - a fachada da unidade-unanimidade e da paz, varrendo os grandes problemas e conflitos debaixo do famigerado "tapete".

A uma espiritualidade cristã autêntica, porém, esta ânsia por "paz a qualquer preço" sempre pareceu hipócrita. Já a denunciava o profeta bíblico: "Do menor ao maior, são todos aproveitadores, do profeta ao sacerdote, todos enganadores. Sem responsabilidade querem curar a ferida do meu povo, dizendo apenas "Shalom! Shalom!", quando paz não existe!" (Jr 6,13-14). E o próprio Cristo, anunciado como "manso e humilde de coração" na nossa atual mentalidade eclesial, foi, na realidade, um grande polemizador das causas justas, que discutiu com juristas canônicos e sacerdotes, chamando-os de hipócritas, guias cegos e sepulcros caiados (Mt 23). Jesus pegou pesado com ricos ("Ai de vós!") e políticos ("Raposa"), mas também não costumava bajular as multidões que o escutavam ("geração má e adúltera!"). "Não vim trazer a paz, mas a espada", disse ele certa vez. Ou seja, veio para nos forçar a uma tomada de posição: ou a favor ou contra as prioridades do Reinado de Deus - e os seus preferidos.

Esta espiritualidade bíblico-evangélica só pode chocar a mentalidade cristã vigente. Repete-se, em todas as paróquias, o lema da Campanha da Fraternidade ad nauseam ("A paz é fruto da justiça"), mas não se encontra quem queira denunciar as tremendas injustiças e desigualdades que permeiam nosso convívio social brasileiro. Tomar partido? É complicado...! Ninguém quer "pegar (no) pesado", tudo deve ser "light" e facilmente digerível, senão os "fiéis" vão embora...

Dom Helder Camara, cujo centenário de nascimento (1909) comemoramos este ano, exercia-se na espiritualidade cristã autêntica e não fazia concessões ao "gosto" das multidões. No seu já célebre livro "Revolução dentro da Paz" (RJ 1968), o pastor-profeta dizia: "Trata-se de convencer os senhores de hoje a completar a abolição da escravatura, contribuindo, de modo decisivo, não para um amplo movimento filantrópico e assistencialista, mas para um autêntico movimento de promoção humana" (p.79). Sabia da inocuidade de certos discursos eclesiásticos em favor da paz e da justiça, quando desacompanhados de ações concretas no terreno sócio-político: "Se não creio na violência armada, também não chego à ingenuidade de pensar que bastam conselhos fraternos, apelos líricos, para que tombem estruturas sócio-econômicas, como ruíram os muros de Jericó" (p.37).

É esta espiritualidade mais profunda de Dom Helder que não só sabe dar pão aos pobres, mas que pergunta pelas causas da pobreza e que, por consequência, aceita ser "perseguida por causa da justiça" (Mt 5,10) que "O GRUPO", aqui em Fortaleza, está querendo relançar ao povo cristão, durante noite de conferência no Colégio Santo Tomás de Aquino, no decurso da SEMANA DOM HELDER CAMARA. A conferência, intitulada "Dom Helder e a espiritualidade do conflito", será proferida por um padre e velho amigo do falecido Dom, João Pubben, no dia 29 de setembro, às 19:00 h, no auditório daquela instituição de ensino. Vamos conferir. Está na hora de avançar para águas mais profundas...

26 de ago. de 2009

Margarida de Souza Neves

Margarida de Souza Neves, Professora do Departamento de História da PUC-Rio, conviveu com Dom Helder desde a sua infância, no contexto de sua família, próxima a "Padre Helder" já nos primeiros anos após a sua chegada ao Rio de Janeiro. Esse texto é uma versão revista e modificada de um depoimento dado no Centro Loyola de Fé e Cultura, da PUC-Rio, em 06/10/1999, que, em sua primeira versão foi publicado na Revista Magis (nº 34. Rio de Janeiro: Centro Loyola de Fé e Cultura, 2000.) e no livro MONTENEGRO, Antonio Torres et al (orgs). Dom Helder. Peregrino da utopia. Caminhos da educação e da política. Recife: Editora da UFPE, 2002.


História de uma carta e de muitas lembranças

Para Otto Maduro, amigo muito querido e que
(quase) me obrigou a reescrever esse texto.

Ao aceitar o convite para escrever sobre Dom Helder Camara, minha memória passeia pelo país da infância e do universo familiar e me vejo, menina, perto de uma avó querida que continua viva em meu coração como uma senhora de cabelos brancos e sempre muito bem penteados em um coque ao mesmo tempo simples e elaborado, envolta num perfume que, hoje sei, chamava-se “Je reviens” e vinha num vidro azul cobalto, com mãos carinhosas e muito brancas, e lindos olhos verdes que ninguém na família herdou. Chamava-se, como três gerações de minhas primas e como eu, Margarida. Por isso foi sempre para mim a “vovó Xará”, ainda que para todos fosse a “Dona Margarida”. Minha avó me deixou como herança, além do nome e de muitas lembranças boas entre as quais o sabor nunca esquecido da melhor rabanada do mundo, o duplo privilégio de ser sua neta e de ter convivido muito de perto com o padre Helder. Mesmo depois de bispo e famoso, para nós, ele foi sempre o “padre Helder”.

Para minha avó, ele era como um filho. Desde que chegou ao Rio de Janeiro como um jovem padre e, como fui perceber muito mais tarde, bem diferente do bispo que foi nos anos 60, ela teve com ele uma relação muito maternal, e ele teve para com ela carinho e atenções de filho. E o padre Helder, para todos os efeitos, era da família.

Ao recordá-lo, relembro os rostos de minha infância, da minha adolescência, da minha vida inteira. E esse contato muito pessoal, muito íntimo e muito familiar com o padre Helder me deixa agora em uma situação complicada. Fico constrangida, porque é como se desse um depoimento sobre alguém da família que ficou famoso. Foi ele que casou meu pai e minha mãe, batizou todas as crianças da família, dividiu nossas alegrias e tristezas e, pela vida inteira, todos os domingos, festas de Natal, Páscoa e aniversários sempre nos encontrávamos na casa de minha avó ou de uma de suas três filhas. Escrever sobre isso é revelar algo familiar e muito pessoal, e é difícil selecionar algumas dessas lembranças. Ao mesmo tempo, me sinto meio que envergonhada, por ter tido, ao longo da minha vida inteira, o privilégio dessa convivência próxima, porque não posso deixar de reconhecer que isso deveria ter me tornado uma pessoa mais interessante e melhor do que a que efetivamente sou.

Em todo caso, posta a lembrar, fiz algumas escolhas, consciente de que a memória escolhe sempre, apaga, recria, constrói, e entrecruza os fios da recordação mais pessoal e privada com a trama da memória social, pública e coletiva. Sei que é a minha memória pessoal e o convívio familiar com o padre Helder que pode ser o diferencial desse depoimento, mas também não ignoro que é na medida em que sua figura pública interessa a muitos que esse relato ganha sentido. Conhecer as regras do jogo, no entanto, não faz dele um exercício racional, e mergulho nele com toda a carga de emoção dessas lembranças.

A primeira coisa a fazer é procurar deixar de lado os calos de ofício de profissional da história e, simplesmente, embarcar na viagem das recordações, coisa particularmente difícil, uma vez que um dos meus percursos profissionais prediletos é pelo território da memória como tema de estudo, o que me obriga a saber que ela é sempre fiel e sempre móvel, como nos ensinou Jacques Le Goff. Sei da importância e do significado histórico do padre Helder para a igreja brasileira, latino-americana e mundial. Sei também o que representou aquela figura frágil e forte na história do país. Por outro lado, reconheço que historicamente, não apenas para a minha geração, mas para ela de maneira muito especial, ele e outros poucos foram sinal de esperança plena – a teologal e a simplesmente humana, portanto - em um momento muito vazio de esperanças, naqueles que foram chamados “os anos duros da ditadura”. É importante sublinhar esse significado histórico, mas não sei analisar, não tenho a menor possibilidade de fazer uma análise histórica do padre Helder. Escolhi então fazer uma espécie de contraponto íntimo, privado, quase de confidência, ou seja, escolhi o lugar da memória pessoal e não o da História, ainda que seja esse o meu ofício.

Selecionei – a memória sempre seleciona e essa seleção nunca é inocente – alguns episódios que gostaria de narrar porque é bom contar a vida. São coisas pequenas e absolutamente pessoais, certamente, mas é o que tenho de melhor para esse momento em que o centenário de seu nascimento é comemorado e a PUC-Rio declara o ano de 2009 o Ano Dom Helder Camara.

A primeira delas é uma lembrança de infância. Eu ia fazer a primeira comunhão, e, como era de protocolo, foi com ele a minha primeira confissão. É meio esquisito contá-la, porque pesa sobre essa lembrança outra recordação, a do clima soturno que cercava o que então se chamava “segredo de confissão”, que muitos dos que, como eu, estudaram em colégios católicos, aprendemos ser inviolável e cercado de uma atmosfera meio assustadora.

Sentada no colo dele, com meus seis anos de idade, fui me confessar sem susto. A freira que preparou - em francês, diga-se de passagem - aquele bando de menininhas do Colégio Sacré Coeur de Jésus parar a primeira comunhão era, certamente, mais bem intencionada do que teologicamente informada e pedagogicamente correta. E tinha dito para aquelas meninas de cinco, seis anos de idade que “o pecado da carne não tem o perdão de Deus”. Fiquei muito impressionada com aquilo, pois não tinha remota idéia do que poderia ser o tal “pecado da carne”. Deduzi que deveria ser comer carne nas sextas-feiras, o que, penso hoje, é uma interpretação inteiramente razoável para uma criança de cinco ou seis anos. Creio lembrar, mas certamente invento – esse jogo faz parte dos trabalhos da memória – que achei o fato de comer um bom filé mignon nas sextas feiras “não ter perdão de Deus” um certo exagero da parte do criador, mas como tinham me assegurado que ele “tudo podia e tudo sabia”, não fiz maiores problemas: provavelmente ele encasquetara com aquilo, ou tinha tendências vegetarianas.

Sentada no colo do padre Helder, de tranças compridas e com o uniforme azul marinho e branco do colégio, iniciei minha confissão com o que sempre dizem as crianças quando se confessam pela primeira vez: “eu bati na minha irmã, respondi a meus pais, fiz malcriação para a Naza” – minha babá, Nazareth Santos da Silva, moradora de Nova Iguaçú, jovem, negra e linda – e... “fiz o pecado da carne”. Ele não demonstrou o menor espanto com essa última afirmação. Recordo que disse que responder a pai e mãe e brigar com a Laura, naquele momento minha única irmã, não tinha grande importância. Isso não era lá muito bonito, mas acontecia com todo mundo. Mas durante um tempo que recordo como longo, explicou-me que fazer malcriação para a Naza era uma coisa que eu deveria procurar não fazer mais. E é bom ter na minha memória esse fragmento, retalho do amor apaixonado pelos mais pobres e mais sofridos que ele sempre teve. E ele me disse algo assim: “a Naza não tem a mesma vida que você tem, a Naza não tem uma casa como vocês têm, mas ela está aqui por que precisa trabalhar, coisa que você não precisa fazer”. Fiquei muito impressionada com isso. Só depois ele pediu: “Agora me explica o que é o pecado da carne”. E eu, aos seis anos, e já muito pretensiosa, virei para ele e perguntei: “Você não sabe?!” “Acho que não me lembro não”, respondeu. Então eu esclareci que “A madre falou que esse pecado não tem perdão de Deus!”

E ele foi veemente: “Ah, não minha filhinha! De pecado eu entendo muito mais do que a madre, e não existe nenhum pecado que não tenha perdão de Deus, porque Deus é pai, e, por isso, perdoa sempre”. Achei aquilo meio misterioso. Mas como tinham me dito que Deus era “onisciente, onipresente e onipotente”, coisa que, quando decifrada, me parecia fascinante, pensei que ele resolvera isso, e pronto. E para que o padre Helder ficasse definitivamente informado, resolvi explicar que o pecado da carne era comer carne nas sextas-feiras. Ele não riu! Manteve–se absolutamente sério e disse; “Não, não é isso não, Guida, eu me lembrei agora e vou explicar para você o que é...” A explicação que ele me deu foi muito indicativa da capacidade que tinha de sintonia perfeita com as mais variadas audiências, e do dom de falar uma língua inteligível para qualquer um que se aproximasse dele. E a menininha que eu era então entendeu perfeitamente e guardou pela vida a fora a explicação: “Sabe? O pecado da carne é quando a gente usa outra pessoa como se fosse uma coisa”. Não tive nenhuma necessidade de explicações de outra ordem para compreender que “usar uma pessoa como se fosse uma coisa” era mesmo muito grave. Acredito que essa lembrança, ao mesmo tempo, remete ao amor apaixonado pelos que ele via como seus irmãos mais sofridos, e sinaliza uma fé em Deus que é também um respeito absoluto a tudo o que é humano, inclusive as bobagens de uma menina de seis anos. E que pode ser libertadora. Ao longo de toda a minha vida pessoal, aquela definição indelével do que é o tal “pecado da carne”, certamente, teve uma função libertadora.

As pessoas que tiveram uma convivência mais próxima com Dom Helder sabem que ele passava parte das noites sem dormir, para rezar. A família reclamava muito porque, às três horas da madrugada, ele levantava para rezar e aquilo atrapalhava um pouco o ritmo da casa. Só um homem com uma profunda vida interior seria capaz dessa imensa liberdade e dessa maravilhosa explicação do que vinha a ser o famoso “pecado da carne”, longe de todo moralismo, de toda a repressão em relação à sexualidade, de toda conotação de culpa associada à corporeidade e ao prazer. E a menininha de tranças nunca vai esquecer essa primeira confissão.
A segunda lembrança que quero dividir com os que tiverem paciência para ler esse texto é a seguinte: uma vez, já adulta, encontrei com o padre Helder no aeroporto de Guarulhos, se não me engano no ano de 1981. Aliás, o lugar onde, adulta, mais o encontrava era nos aeroportos, por razões óbvias: ambos, em função de nossos ofícios, éramos viajantes contumazes. Para ele, nos anos 60 e 70, uma das formas de romper o silêncio e a anulação que lhe foram impostos era viajar, incessantemente, e falar onde podia falar, fora do Brasil, sobretudo. Ou seja, calaram o padre Helder no Brasil, mas ele vivia sendo convidado para falar pelo mundo a fora.

Naquele dia, na sala de embarque do aeroporto de Guarulhos, conversamos muito porque o vôo atrasou e viajamos juntos no mesmo avião. Ele perguntou sobre a família inteira. A conversa era sempre muito familiar... E me lembro que fiquei emocionada porque os outros passageiros se aproximavam dele com carinho, e traziam as crianças para que ele as abençoasse. Entramos no avião. Na época, a igreja estava muito polarizada entre conservadores e progressistas, já que e as tensões e conflitos que atravessam a sociedade passam por dentro da igreja, como também atravessam qualquer outro espaço social. Eu, pessoalmente, estava muito mal com aquilo. Disse isso a ele e contei algumas histórias que não podia entender. Algumas delas afetavam diretamente a PUC-Rio e eu não me conformava que a minha Universidade, depois de acolher nos anos da ditadura a muitos dos que foram expulsos de outros centros de pesquisa e universidades públicas, no momento da redemocratização vivesse conflitos internos por razões ideológicas. Queria ouvi-lo e contei a minha versão sobre a crise vivida na universidade em 1981. Ele me escutou atentamente. No avião, ele, ou eu – não me lembro - devemos ter pedido a alguém para trocar de lugar, porque sentamos juntos durante a viagem. Quando a aeromoça começou aquela exibição do que fazer com a máscara de oxigênio em caso de despressurização da cabine, ele interrompeu a conversa: “Um minutinho, Guida. Agora eu quero prestar atenção à aeromoça.” Eu olhei para ele, pasma, e disse: “Você vai prestar atenção?! Quantos milhares de vezes você já ouviu essa lenga-lenga?” E ele disse: “Claro que quero prestar atenção! É o trabalho dela! E esse trabalho é muito importante, é a segurança de todos nós. Eu sempre gosto de prestar atenção.” E prestou tal atenção que a aeromoça sentiu-se extremamente prestigiada, primeiro, porque ninguém mais no avião dava a menor bola para o que acontecia enquanto uma voz meio mecânica repetia aquele discurso sobre bancos flutuantes e, segundo, porque era ele, Dom Helder Camara, quem prestava a maior atenção ao que ela fazia. Quando a aeromoça acabou a demonstração, ele me disse: “E aí, minha filhinha. Como terminou a coisa?”. Então continuei a expor a minha perplexidade – a minha raiva, tenho que reconhecer – com aquela situação e ele disse apenas: “Eu mesmo não sei por que, mas isso acontece, isso acontece muitas vezes, faz parte...”

Achei aquilo duplamente belo: a atenção individual àquela mulher – a ela e ao trabalho que fazia – e a enorme capacidade daquele que era então considerado um dos mais “insignes representantes do episcopado brasileiro, latino-americano” e por aí a fora de dizer: “não sei, é assim mesmo, faz parte...”. Foi só o que ele disse. E, logo em seguida, mudou o rumo da prosa para assuntos familiares. Mas aquele “não sei, é assim mesmo, faz parte” foi extremamente apaziguador naquele momento.

Quero também rememorar algo ainda mais pessoal. Tenho mais de uma carta do padre Helder, e guardo comigo a caixinha forrada de papel prateado em que minha avó conservou as muitas cartas pessoais que recebeu dele. Uma carta é, para mim, muito especial, escrita com a letrinha dele, em papel fino azul hoje já meio amarelado, com caneta tinteiro na inesquecível coloração “azul real lavável” das tintas Parker. Essa carta foi escrita quando minha avó, a D. Margarida do começo dessa história, morreu, no ano de 1974. Eu estava fora do Brasil. Não é preciso dizer que o ano de 1974, no país, foi um momento de tensões imensas e de polarização muito forte, no qual, com freqüência, pessoas da mesma família se posicionavam em campos diversos e mesmo opostos. Em 1974, o padre Helder, já arcebispo de Olinda e Recife, veio ao Rio. Minha avó estava no hospital, já muito mal, e ele foi visitá-la, despedir-se dela. A pessoa da minha família que a acompanhava no momento em ele chegou ao quarto do hospital não o deixou entrar. Na época, eu morava em Madrid e escrevia a tese de doutorado, e quando soube do ocorrido por uma carta de minha mãe, enlouqueci. Para mim, aquilo foi uma coisa absolutamente perversa e absurda, e escrevi para ele dizendo que achava o que tinha acontecido um horror. Ele mandou de volta uma carta, não muito longa, e que dizia, entre outras coisas, o seguinte:


Recife 27/02/1974
Querida Guida. D. Margarida teve e terá sempre um lugar imenso em meu coração. O mesmo digo de todas as filhas e todos os genros dela, de todos os netos e bisnetos até 4ª ou 5ª geração. É impossível julgar. Sofri não podendo mais, na terra, trocar uma palavra com a querida amiga. Quem me garante que não foi pensando em proteger a saúde dela? De qualquer modo, temos a eternidade toda para conversar. [...] Acompanho e acompanharei os seus passos na Europa, ou onde quer que você esteja. [...] Na Santa Missa a tenho, e terei sempre presente. Seu irmão em Cristo.

+Helder.


Como sempre, a assinatura vinha precedida de uma cruzinha, como a de muitos padres e mesmo leigos católicos. Mas sempre achei aquela cruzinha mais simpática que outras...

Essa é uma linda carta por muitas razões. A primeira, é que o bispo mais famoso do Brasil naquela época, o homem que foi a voz dos que não tinham voz nesse país em anos tão cruciais, admite o sofrimento pessoal: “sofri não podendo mais na terra trocar uma palavra com a querida amiga”. Admite o carinho, o amor, a amizade, o coração capaz de abrigar a família inteira “até a 4ª ou 5ª geração”, e escreve com simplicidade que sofreu porque não o deixaram vê-la. É também uma carta bonita na relação que estabelece com o tempo: “D. Margarida teve e terá sempre” - no momento em que escreveu, minha avó já tinha morrido -; “acompanho e acompanharei os seus passos”; “a tenho e terei sempre presente”. Mostra sua capacidade de estar no tempo e de assumir todos os tempos – passado, presente e futuro – com essa perspectiva invejável de quem acredita que “tem a eternidade inteira para conversar”. Também é uma carta muito pessoal, com sujeito na primeira pessoa do singular, “eu”, e dirigida a uma pessoa de carne e osso “você”, a quem ele chama, como sempre, pelo apelido familiar de Guida. Denota também uma grande - mas nada grandiloquente – generosidade de julgamento: “Quem me garante que não foi pensando em proteger a saúde dela?”. E na carta inteira, nada de álibis espirituais, de consolos piedosos, de fáceis alusões a um Deus distante: a eternidade, para ele, é “para conversar” com os amigos.

Ele já está por lá. E, se isso não é um absurdo teológico, deve estar no colo de Deus, como eu estive, criança, no colo dele. Porque soube olhar com atenção e com carinho para cada pessoa – a Naza, a vovó Xará, a aeromoça, as crianças que abençoava pelo caminho e aquela menina de tranças que eu fui e que explicou para ele que o pecado da carne era comer um bom bife em dias de abstinência. E porque soube olhar para a igreja e para a história reconhecendo o que “não sabia” ou “não entendia”. Porque assumiu os conflitos e procurou ficar sempre do lado da liberdade e da justiça. Na minha lembrança e, talvez, na de muitos, quem permanece vivo pela força da memória não é “a mais insigne figura do episcopado brasileiro”, “o idealizador do CELAM”, “o criador do Banco da Providência”, “o grande articulador nos debates do Concílio Vaticano II”, “o padre jovem simpatizante do integralismo que tornou-se, na maturidade, o bispo vermelho temido pelos militares”, mas sim a figura forte e frágil daquele padre de batina surrada e de cor indefinida, cruz nua de madeira no lugar do crucifixo episcopal e gestos largos, cujo amor apaixonado pelos mais pobres e mais sofridos parecia vir das longas horas de oração. Ele continua presente nas nossas vidas, porque soube ser plenamente humano, densamente humano, e porque acreditava – com a vida - num Deus que é pai e faz todos os homens irmãos. E porque, em função do que acreditava, não teve medo de falar quando muitos se calaram.

A menina de tranças nunca esqueceu o que é o pecado da carne. A jovem que fazia seu doutorado na Europa guarda até hoje, como bem precioso, a cartinha escrita em papel azul e que diz, mesmo de dentro do sofrimento, ser “impossível julgar”. E a professora que continua a freqüentar com alguma assiduidade os aeroportos, passou a prestar grande atenção ao ritual profissional de todas as aeromoças. Também não vão esquecê-lo tão cedo os milhares de crianças, jovens e adultos da Praia do Pinto, do Morro de Santa Marta, do Recife, dos muitos aeroportos e de tantos lugares no mundo que cruzaram seu caminho e que nunca tiveram o privilégio de almoçar com ele aos domingos, de dividir com ele as maravilhosas rabanadas da vovó Xará no Natal, de ouvir em primeira mão seus planos e sonhos, de escutá-lo contar histórias do “padre José” - o anjo da guarda também padre com quem parecia ter grande intimidade, de vê-lo atento aos pequenos dramas e às pequenas alegrias familiares tanto quanto ao discurso monótono das gravações em aviões da mesma forma como sabia estar atento aos desafios de seu tempo e a cada minuto da vida. Nunca foi um grande teólogo ou um intelectual particularmente brilhante. Mas sempre foi um homem simples, corajoso, solidário e bom.

Dom Helder e Margarida Lima Heitor, 1962

Fonte: http://www.ccpg.puc-rio.br/memoriapos/dhc/depoimentos/margarida.htm

Memória. Helder Câmara. 10 anos


Hoje há dez anos morria D. Helder Câmara. No dia 7 de fevereiro

deste ano, celebramos o seu centenário de nascimento.



16 de jun. de 2009

Dom Helder e o Pacto das Catacumbas

No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio Vaticano II, cerca de 40 Padres Conciliares celebraram uma Eucaristia nas catacumbas de Domitila, em Roma, pedindo fidelidade ao Espírito de Jesus. Após essa celebração, firmaram o "Pacto das Catacumbas" 1.

O documento é um desafio aos "irmãos no Episcopado" a levarem uma "vida de pobreza", uma Igreja "servidora e pobre", como sugeriu o papa João XXIII. Os signatários - dentre eles, muitos brasileiros e latino-americanos, sendo que mais tarde outros também se uniram ao pacto - se comprometiam a viver na pobreza, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. O texto teve forte influência sobre a Teologia da Libertação, que despontaria nos anos seguintes.

Um dos signatários e propositores do Pacto foi Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento foi celebrado no dia 07 de fevereiro de 2009.


PACTO DAS CATACUMBAS DA IGREJA SERVA E POBRE

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.


2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.


3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.


4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.


5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.


6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.


7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.


9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.


10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.


11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:
* a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres; * a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:
* esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles; * suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo; * procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...; * mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

AJUDE-NOS DEUS A SERMOS FIÉIS.


Notas:

1. Publicado no livro "Concílio Vaticano II", Vol. V, Quarta Sessão (Vozes, 1966), organizado por Boaventura Kloppenburg (p. 526-528).

27 de mai. de 2009

Frases de Dom Helder


La povertà è possibile, la miseria no!

A pobreza é possível, a miséria não!

***

La fame degli altri, candanna l'abbondanza di chi non ha fame!

A fome dos outros condena a abundância de quem não tem fome!

***

Le persone ti pesano? Non caricarle sulle spalle, portale sul cuore!

As pessoas pesam para você? Não carrega-as nas costas, mas sim no coração!

***

È giovane chi ha una ragione per vivere.

É jovem quem tem uma razão para viver.

***

Non mi rassegno: la fome sarà vinta.

Não me resigno: A fome será vencida.

***

In manus tuas.

Em tuas mãos.

***

L'unica guerra legitima è quella che si dichiara alla miseria e all' ignoranza.

A única guerra legitima é aquela que se declara contra a miséria e a ignorância.

Fonte: Ora et Labora

8 de abr. de 2009

Dom Marcelo Carvalheira

O legado de Dom Helder: uma igreja solidária com as grandes causas do povo
Por Moisés Sbardelotto

Grande amigo e profundo admirador de Dom Helder, o arcebispo emérito da Paraíba Dom Marcelo Pinto Carvalheira foi ordenado bispo pelas mãos do próprio Dom Helder. Recebendo dele, além da sucessão apostólica, um legado de comprometimento com os direitos humanos e a cidadania, Dom Marcelo relata, em entrevista por telefone à IHU On-Line, um pouco da sua grande convivência e confiança com o seu amigo e colega bispo. Dom Marcelo, que atualmente reside no Mosteiro de São Bento, em Olinda (PE). Natural do Recife, Dom Marcelo Pinto Carvalheira, hoje com 81 anos, foi ordenado bispo por Dom Helder Câmara em 1975. Em sua celebração de ordenação episcopal, também estavam presentes Dom Aloísio Lorscheider e Dom José Maria Pires.


IHU On-Line – Como Dom Hélder Câmara, um bispo católico nascido no interior do Nordeste, chegou a ser reconhecido internacional, tendo recebido dezenas de prêmios internacionais e quatro indicações ao prêmio Nobel da Paz?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – Quando Dom Helder chegou ao Recife, ele recebeu uma missão importante e coordenando vários grupos dentro da diocese. Como ele tinha muito valor pessoal e uma grande facilidade para se comunicar, ideias muito claras, mas ao mesmo tempo revolucionário, de querer reformas firmes, então ele se firmou demais. Eu também, por exemplo, me liguei muito a ele, como amigo. Era muito procurado por ele, conversávamos muito. Era uma figura de muito valor pessoal, de muita convicção, certo do que ele queria. Então, foi tomando, cada vez mais, posição dentro do Nordeste do Brasil. Eu era, naquele tempo, arcebispo emérito da Paraíba, mas morando na capital, em João Pessoa, com várias tarefas e muitos encontros com ele. É claro que eu dava um apoio muito grande, mas nem todos apreciavam a posição dele. Então, a coisa ficou complicada, difícil. Quiseram fazer queixas a Roma contra ele.

IHU On-Line – Como Dom Hélder posicionou-se frente a ditadura militar, visto que seu bispado em Olinda ocorreu justamente desde 1964 até 1985, e como suas ações eram encaradas pelos militares?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – O mais difícil possível. Respeitavam-no devido à autoridade moral que ele tinha e à sua influência diante e junto ao povo. Era impressionante. Ele era uma pessoa, de certo modo, que suscitava um certo temor. Ninguém queria opor-se a ele tão fortemente. Mas aconteceu que ele ficou numa linha muito clara. Fizeram de tudo, então, para conseguir neutralizá-lo, o que não foi possível.

IHU On-Line – Qual a atitude do Vaticano com relação à atuação de Dom Hélder? Como Paulo VI e João Paulo II, que acompanharam a sua visibilidade internacional, reagiram frente ao trabalho do bispo brasileiro?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – No começo, com relação à influência de Dom Helder, alguns ficaram assustados em Roma. Receio, essa coisa toda... Mas Dom Helder tinha um espírito muito bom. Ele queria o bem da Igreja, queria descobrir por onde é que ela devia ir, porque não podia ficar nessa situação ambígua. Essa foi a posição dele. Daí, então, a resistência grande dos opositores dele, que o atacavam, por exemplo, como não merecendo a confiança do Papa. Muito difícil. Eu fiquei no meio do fogo da discussão, porque eu já tinha uma posição de muita influência como vigário episcopal, na região do Nordeste todo. Foi muito doloroso.

IHU On-Line – Quem foi o pastor Dom Helder, bispo e arcebispo de Olinda?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – Na época, atacavam-no muito como sendo de uma linha mais da revolução civil. E Dom Helder sempre dizia: “Nada disso. Eu quero é a revolução que foi suscitada pelo Concílio Vaticano II”. Essa posição lhe deu muita força. Muitos bispos o apoiaram, naturalmente eu também, que estava, naquela época, como presidente do episcopado do Nordeste. Então, ficamos muito unidos. E eu via a convicção de Dom Helder. Não tinha nada que fosse heterodoxo, contra a fé, nada disso. Havia muita confusão quanto a isso: que ele falhava contra a fé, essa coisa toda. Mas nada disso se sustentava. Aí ele foi crescendo muito mais. O Santo Padre começou a reconhecer também, embora não houvesse nenhuma posição jurídica do Papa para dar força a ele. Roma foi muito prudente. E deixou-o assim também muito livre.

IHU On-Line – Dom Hélder foi o único brasileiro a ser indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz, mesmo nunca o tendo conquistado. Qual o significado desse reconhecimento, dentro da perspectiva da luta pelos direitos humanos e da cidadania?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – Ele era a palavra mais clara e mais firme sobre esses assuntos. Ele sabia muito bem que, nesse sentido, Roma o apoiava. Então, ele teve muita força. Eu dava assessoria muito grande a Dom Helder. Era impressionante o apoio que ele sentia, inclusive do episcopado, com raras exceções. E como ele era um homem de fé, um homem de oração, essa postura piedosa, profundamente evangélica, tinha uma força interessantíssima, incrível. Daí também a irritação daqueles que não concordavam com ele. Sobretudo por parte da sociedade, que achava que ele era exagerado, que ele dava muita força ao comunismo, quando não era nada disso. Não foi nada fácil para ele.

IHU On-Line – Como o senhor se sente tendo recebido a sucessão apostólica pelas mãos de Dom Helder? Como isso influenciou o seu bispado?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – Eu fiquei cada vez mais ligado a Dom Helder. Ele confiava muito em mim, tínhamos muita amizade, fazíamos orações em comum, eu com ele, ele comigo. Havia uma ligação pessoal muito grande. E o prestígio dele, sobretudo pela autoridade moral, pelas convicções, ao mesmo tempo como um arcebispo aberto, era enorme. E, ao lado disso, o combate a ele por parte daqueles – como falamos numa linguagem mais direta – reacionários, que o combatiam muito, dizendo que ele era exagerado, que ele iria atrapalhar tudo. Mas a força dele era maior. Inclusive junto a Roma, começaram a reconhecer o valor de Dom Helder. Eu o acompanhei algumas vezes em Roma e via como era.

IHU On-Line – Quais são os frutos mais sensíveis na Igreja do Brasil hoje, que cresceram graças à atuação desse grande bispo?

Dom Marcelo Pinto Carvalheira – Antes de tudo, uma igreja que se torna solidária com o povo, com as grandes causas do povo, e não uma igreja que fique distante, querendo impor pequenas normas. Ele queria mesmo uma posição eclesial, e não eclesiástica, no mau sentido. Isso foi muito forte. Então, muitos se uniram a ele no episcopado. Outros tinham uma desconfiança muito grande. Houve, assim, uma divisão. Claro que eu fiquei cada vez mais unido a Dom Helder. Ele confiava tudo, absolutamente tudo comigo. Às vezes ele fazia até meditação comigo. Depois, Dom Helder teve que se afastar. Mas ele permaneceu muito ligado àquelas lutas que tinham o seu centro no Recife. Eu sou recifense, sou da diocese do Recife e lhe dei muita força também. Eu era vice-presidente da Conferência do Nordeste. As circunstâncias foram muito favoráveis. Ao mesmo tempo, Dom Helder ficou mais ainda combatido por aquele grupo mais ligado às direitas. Mas não se dava crédito a esse grupo, embora fosse mais forte.

Fonte: UNISINOS


Pe. José Oscar Beozzo

Dom Helder, pastor da libertação em terras de muita pobreza
Por Moisés Sbardelotto


Ao se completarem os 100 anos de nascimento de Dom Helder Câmara, no dia 07 de fevereiro de 2009, a Igreja do Brasil tem muito a agradecer e a se inspirar na vida e na obra do querido “Dom”, como ficou conhecido. Nesta entrevista especial, concedida por e-mail à IHU On-Line, padre José Oscar Beozzo, um dos maiores historiadores da Igreja na América Latina, comenta alguns traços da vida do grande arcebispo de Olinda e Recife, um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). José Oscar Beozzo é padre e teólogo, com mestrado em Sociologia da Religião, pela Université Catholique de Louvain (Bélgica) e doutorado em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP). Faz parte do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil), filiado à Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe (CEHILA). Também é sócio fundador da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital). É autor de inúmeros livros, entre os quais "A Igreja do Brasil" (Vozes, 1993).



IHU On-Line – Há 100 anos, nascia Helder Pessoa Câmara, o futuro arcebispo de Olinda, reconhecido mundialmente pelo seu trabalho voltado a uma igreja mais simples, em contato com os pobres e pela não-violência. Quais foram os grandes passos que levaram aquele pequeno menino a ser um bispo católico reconhecido mundialmente, tendo recebido dezenas de prêmios internacionais, com quatro indicações ao prêmio Nobel da Paz?

José Oscar Beozzo – Os passos de Dom Helder não podem ser desconectados de algumas conjunturas nacionais, latino-americanas e internacionais que o interligaram com pessoas e eventos excepcionais.

Desde os tempos do seminário, interessou-se pela imprensa, tornando-se propagandista de O Nordeste, jornal da diocese, para o qual angariava assinaturas, o que lhe valeu memorável encontro com o Pe. Cícero, no Juazeiro. Começou também a publicar artigos na imprensa de Fortaleza, escondido por pseudônimo, até ser proibido pelo reitor do seminário. Posteriormente, imprensa escrita, rádio e televisão foram sempre instrumentos que manejava com maestria para passar adiante seus ideais, valores e mensagem.

"Leigos e leigas foram os mestres de vida de Dom Helder, para a atuação no mundo e para uma espiritualidade longe dos ranços clericais"


O diácono Helder é ordenado padre em 1929, no turbilhão e desmoronamento do mundo econômico liberal na crise daquele ano. No ano seguinte, com as eleições presidenciais e a revolução de 1930, é o Brasil das oligarquias que rui. Entram em cena novos atores sociais no panorama político: os Estados da federação, de modo particular do Nordeste e do Norte, mais Rio Grande do Sul, até então excluídos da partilha do poder, concentrado em São Paulo e Minas Gerais, pela aliança café-com-leite; as classes médias urbanas; a classe operária; os tenentes do Exército, mas também a Igreja Católica alijada dos jogos do poder pelo laicismo republicano. Getúlio Vargas liquidou com a república velha e seu modelo agrário exportador, dando lugar a um projeto de desenvolvimento nacionalista, apoiado na industrialização do país e num pacto populista que uniria o empresariado nacional e os operários, sob a proteção, mas também controle direto, do Estado.

No Ceará, a Liga Eleitoral Católica (LEC) funcionou quase como partido político, tendo na sua coordenação o jovem Pe. Helder Câmara, que se aproximou dos integralistas de Plínio Salgado, abraçando seu ideário político. Em 1935, foi convidado pelo novo governador para assumir uma secretaria de governo, como diretor geral da instrução pública, no que seria hoje a secretaria de educação, num claro sinal desse retorno das hostes católicas ao jogo político. No final desse ano, atritos com o governador, na condução da política educacional, levam-no a pedir demissão e partir do Ceará para o Rio de Janeiro.

Funcionário público e discípulo de Dom Leme

No Rio de Janeiro, foi acolhido pelo conterrâneo Lourenço Filho no Ministério da Educação, dirigido por Gustavo Capanema. Em 1939, passou em concurso público para funções técnicas no Ministério. Na Igreja do Rio, foi recebido pelo Cardeal Dom Sebastião Leme. O Cardeal representou, internamente para a Igreja Católica, um contraponto ao projeto político de Vargas.

Leme tentou superar a atomização da Igreja e o isolamento das dioceses entre si, buscando estabelecer uma estratégia clara de ação e uma articulação do Episcopado para implementá-la. Reuniu os bispos em torno de si em maio e outubro de 1931 e depois para o Concílio Plenário Brasileiro, em 1939, com o intuito de traçar linhas de ação comuns. Tirou a Igreja da defensiva em que fora encurralada pela República Velha, trazendo-a para uma agenda propositiva, numa jornada em que foi auxiliado pela combatividade de Jackson de Figueiredo, da revista Ordem, do Centro Dom Vital, e pela densidade cultural, capacidade de escuta e articulação de Alceu Amoroso Lima à frente das instituições fundadas por Jackson de Figueiredo, da Liga Eleitoral Católica e depois da Ação Católica Brasileira (ACB).

"Dom Helder percorreu os bairros, mocambos e favelas do Recife e do interior em contato direto com a população mais pobre"


Leme criou ainda, em 1935, a ACB, com abrangência nacional, mobilizando o laicato para uma atuação mais aguerrida nas estruturas sociais, políticas e culturais do país. Na capital da república, Helder trabalhou ainda como técnico do Ministério da Educação, entrando em contato com todo o debate sobre os rumos da educação no Brasil e a crescente atuação governamental nesse campo. Esse trabalho rendeu-lhe preciosos conhecimentos e contatos em toda a estrutura governamental. Essas relações seriam fundamentais no campo das relações entre a Igreja e o Estado, em sua posterior trajetória como bispo auxiliar no Rio de Janeiro e como secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Os leigos e as responsabilidades nacionais e internacionais

Através da Ação Católica de Pio XI, leigos e leigas foram seus mestres de vida, para a atuação no mundo e para uma espiritualidade longe dos ranços clericais. No Rio, o então Pe. Helder Câmara prosseguiu com seu envolvimento com os leigos, iniciado no Ceará com a Juventude Operária Católica, a Legião Cearense do Trabalho e a Liga dos Professores Católicos. Em 1950, tornou-se Assistente da nova ação católica especializada, convertendo em nacional seu raio de ação até então limitado ao Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano de 1950, suas funções de assistente nacional da Ação Católica levaram-no por primeira vez a Roma, para o Congresso Internacional da Ação Católica. Essa viagem propiciou-lhe o primeiro contato com Mons. Giovanni Baptista Montini, principal auxiliar do Papa Pio XII, a quem propusera a criação da Conferência dos Bispos do Brasil.

A criação da CNBB, em 1952, replicou em nível episcopal a plataforma de atuação nacional em que havia operado em nível do laicato. O papel de articulação que havia cumprido Dom Leme, pessoalmente, como cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, até sua morte prematura em 1942, passou a ser cumprido institucionalmente, de certa maneira, pela Ação Católica, mas, sobretudo, pela CNBB. O motor era, porém, o próprio Dom Helder, recém nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro e que assumiu a Conferência como seu primeiro secretário-geral, permanecendo nessa posição estratégica durante 12 anos, até 1964. Sua amizade com o Núncio Armando Lombardi, com quem se reunia a cada sábado, permitiu que uma legião de padres envolvidos na Ação Católica, com trabalhos valiosos na pastoral e na formação, fosse promovida ao episcopado, compondo um novo rosto da Igreja brasileira, mais próxima do povo, mais comprometida em suas lutas por superação da pobreza e por justiça e dignidade.

O XXIX Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1955, projetou Dom Helder como o grande organizador desse evento internacional e da I Conferência Geral do Episcopado Latino-americana, realizada logo em seguida. Da Conferência, resultou a criação do Conselho Episcopal Latino-americano, o CELAM. Em 1959, Dom Helder foi eleito um dos seus vice-presidentes.

"O Recife e o Nordeste tornam-se sua trincheira de onde falou ao Brasil, mas também à América Latina e ao mundo"


O Congresso Eucarístico deu-lhe oportunidade para transformar a grande mobilização para organizá-lo, em iniciativas sociais de grande vulto, como a Cruzada São Sebastião, que pretendeu erradicar as favelas do Rio de Janeiro. Dom Helder constataria tempos depois, com certo desalento, que as favelas renasciam logo à frente, mais numerosas e esquálidas. A infra-estrutura humana do Congresso ensejou-lhe a promoção da Feira e do Banco da Providência, retaguarda para inúmeras iniciativas no campo social. O CELAM ofereceu-lhe uma plataforma continental para sua atuação e para a difusão de suas idéias e projetos, em perfeita sintonia com seu entranhado amigo, Dom Manuel Larraín, bispo de Talca, no Chile. O Concílio Vaticano II abriu para os dois – mas de modo particular para Dom Helder, com sua retórica inflamada e sua imaginação e audácia sem limites – a cena internacional.

IHU On-Line – O que caracterizou o trabalho de Dom Helder Câmara como bispo e arcebispo de Olinda? Quem foi o pastor Dom Helder, tanto para a Igreja local quanto para a Igreja do Brasil?

José Oscar Beozzo – Olinda e Recife fizeram, por primeira vez de Dom Helder, o pastor com inteira responsabilidade, de uma porção concreta do povo de Deus, no coração do Nordeste, em terras de muita pobreza, mas também de tradição, lutas e esperança.

No Rio de Janeiro, como bispo auxiliar e depois como arcebispo, mas sempre auxiliar, teve sua ação cada vez mais cerceada pelo Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, cujas visões de Igreja e de sociedade foram cada vez mais se distanciando.

Dom Helder chega ao Recife em 11 de abril, sob o estigma de opositor do novo regime militar apenas instalado com o golpe de 31 de março de 1964. Logo depois, em outubro, é despojado da liderança institucional de secretário-geral da CNBB.

"Olinda e Recife fizeram de Dom Helder o pastor de uma porção concreta do povo de Deus, no coração do Nordeste, em terras de muita pobreza, mas também de tradição, lutas e esperança"


Recife e o Nordeste tornam-se então sua trincheira de onde fala ao Brasil, mas também à América Latina e ao mundo. Mantém um contato diário com seu povo, pela Rádio Olinda, com meditações diárias; anima a criação de grupos de reflexão, leitura bíblica, oração, solidariedade e ação social, apelidados de Encontro de Irmãos.

Lança a Operação Esperança, levando a reforma agrária às terras da arquidiocese e toma outras iniciativas no campo pastoral: noites de encontro com intelectuais e artistas, mas também com sindicalistas, estudantes secundários e universitários. Percorre os bairros, mocambos e favelas do Recife e do interior em contato direto com a população mais pobre.

De Recife, apoiado por um bom número de bispos do Nordeste e superiores religiosos provinciais e articulado por Dom Helder, partiu o primeiro grito mais consistente de crítica social e política ao regime militar, com o Manifesto de 1973: “Ouvi os clamores de meu povo”. O documento, considerado subversivo pelo regime, só pode se espalhar clandestinamente em edições mimeografadas e prontamente recolhidas pelos militares e pela polícia quando encontradas.

Dom Helder foi calado pelo regime militar e colocado no mais rigoroso ostracismo, mormente após o AI-5, em 1968. Foi proibido pela censura que rádios, jornais e televisões de todo o país retransmitissem suas mensagens ou até escrevessem ou pronunciassem seu nome. Só no exterior podia ele falar livremente a multidões cada vez mais numerosas e entusiastas, num sem número de países, mormente na Europa, Estados Unidos e Canadá. Sua forte presença internacional incomodou alguns episcopados, regimes políticos e finalmente Roma, que também cerceou e limitou suas viagens e pronunciamentos.

Nesse sentido, valeu por uma reabilitação, o abraço do Papa João Paulo II a Dom Helder, quando de sua visita ao Brasil em 1980. Ao descer do avião no aeroporto de Guararapes no Recife, ao mesmo tempo em que abraçava o arcebispo banido, exclamou, diante de todos os meios de comunicação do país: “Dom Helder, irmão dos pobres, meu irmão”!

IHU On-Line – Qual foi o papel de Dom Helder dentro do Concílio Vaticano II? Como ele colaborou para que as discussões e mudanças ocorridas em Roma chegassem até o Brasil?

José Oscar Beozzo – No Concílio Vaticano II, Dom Helder cumpriu um duplo papel, de animador e incentivador de propostas e iniciativas corajosas e proféticas, e de articulador incansável da maioria conciliar.

"Deixou o Palácio Episcopal e foi viver pobremente na sacristia da Igreja das Três Fronteiras. Nunca teve um automóvel ou motorista. Usava sua surrada batina branca, com apenas uma cruz de madeira, como insígnia episcopal"

Valendo-se da posição estratégica que ocupava no terceiro maior episcopado mundial, como secretário-geral da CNBB e de sua função de vice-presidente do CELAM, que estreitava laços e de algum modo representava os 600 bispos latino-americanos e caribenhos, quase um quarto do episcopado mundial, Dom Helder mobilizou a ambos os episcopados para uma iniciativa audaciosa. Semanalmente na Domus Mariae, local de residência, durante o Concílio, dos bispos do Brasil, Dom Helder, junto com Larrain do CELAM e Etchegaray, secretário da Conferência Episcopal francesa, com o apoio do Cardeal Suenens, um dos moderadores do Concílio, passou a reunir representantes das conferências episcopais da Europa, Ásia, África, Oceania e Américas.

Essas reuniões influenciaram a agenda, as votações e os conteúdos do Concílio, por sua capacidade de refletir, avaliar, propor e articular uma ação concertada dos principais episcopados, vertebrando de certo modo a assembléia conciliar.

Dom Helder participou igualmente de algum dos grupos informais mais atuantes no Concílio, como o Grupo da Igreja dos Pobres, que reunia bispos dos vários continentes preocupados com o compromisso da Igreja com os pobres e com suas lutas para superar os males da pobreza e da miséria, por meio de maior justiça e de um desenvolvimento integral que atingisse a todos, de modo particular, os mais empobrecidos enquanto países e classes sociais.

Articulou o nascimento do Opus Angeli, grupo que acertou uma forma organizada de teólogos e especialistas nas diferentes ciências humanas e sociais de prestarem uma assessoria qualificada ao episcopado brasileiro. Essa colaboração foi estendida depois a outros episcopados e, sobretudo, às conferências episcopais articuladas entre si no Grupo da Domus Mariae.

Em relação ao episcopado brasileiro, tomou iniciativa e incalculável alcance o ciclo de Conferências, que passou a ser organizado na Domus Mariae a partir da primeira sessão conciliar e que se ampliou e a diversificou nas três sessões subseqüentes. Ali, para cada um dos temas em discussão na Aula Conciliar, foram convidados os melhores teólogos e especialistas dos vários países para falar aos bispos do Brasil, qualificando o episcopado brasileiro para uma participação cada vez mais consciente e fundamentada nos debates, propostas e votações conciliares. Fez assim, da CNBB, um verdadeiro Fórum de debates de todos os temas e assuntos conciliares, por mais difíceis e delicados que fossem.

"Só no exterior ele podia falar livremente a multidões cada vez mais numerosas e entusiastas. Sua forte presença internacional incomodou Roma, que cerceou e limitou suas viagens"

Essa longa e enriquecedora convivência romana ao longo das quatro sessões conciliares fez da CNBB o episcopado que melhor se preparou para a recepção conciliar, o único a sair de Roma com um plano de aplicação do Concílio, pensado, debatido e votado no seu conjunto e detalhes e que foi batizado de PPP: Plano de Pastoral de Conjunto.

Dom Helder, que nunca falou na Aula Conciliar, tornou-se um dos mais ouvidos e respeitados padres conciliares. Sua voz que não se fez ouvir na Basílica de São Paulo estava quase que diariamente presente nos meios de comunicação social, com inumeráveis entrevistas e conferências, que eram retransmitidas pelas rádios e televisões de todo o mundo.

Sua grande tribuna conciliar foram os meios de comunicação social, tendo-se tornado um amigo de centenas de jornalistas que cobriram regularmente o Concílio de 1962 a 1965. Isso ajuda a explicar e enorme audiência internacional de Dom Helder, também nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II.

IHU On-Line – Muito se comenta sobre o "Pacto das Catacumbas", documento assinado por cerca de 40 padres, nas catacumbas de Domitila, em Roma, durante o Concílio, que teve grande influência na Teologia da Libertação. Poderia contar-nos mais detalhes sobre esse pacto?

José Oscar Beozzo – O Pacto das Catacumbas foi firmado pelos bispos pertencentes ao grupo Igreja dos Pobres. Quase 500 outros bispos aderiram ao documento, cujo título era: "O Pacto da Igreja pobre e servidora", explicando assim seu impacto em praticamente toda a Igreja, indo da Europa, passando pela Ásia, África e chegando a América Latina, onde se encontrava o grupo mais numeroso de bispos comprometidos com essa linha de pensamento e ação.

O Pacto se desdobrava em 13 compromissos assumidos conjuntamente pelos seus signatários no sentido de viverem pobremente, quanto à habitação, vestuário, alimentação e meios de locomoção.

"No Concílio Vaticano II, Dom Helder cumpriu um duplo papel, de animador e incentivador de propostas e iniciativas corajosas e proféticas, e de articulador incansável da maioria conciliar"


Isso explica porque Dom Helder, assim que pode, deixou o Palácio Episcopal de Manguinhos e foi viver pobremente na sacristia da Igreja das Três Fronteiras, no Recife, ou que nunca tenha tido um automóvel ou motorista ou ainda que usasse sua surrada batina branca, com apenas uma cruz de madeira, como insígnia episcopal.

A entrega das terras da arquidiocese a camponeses pobres que ali trabalhavam, empenhando-se em dar-lhes assistência técnica, jurídica e social para que conquistassem autonomia e cidadania, enquadrava-se nos compromissos do Pacto das Catacumbas que propunha ainda:

“Achando a colegialidade dos bispos sua realização mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral – dois terços da humanidade – comprometemo-nos:

- a participar, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;
- a requerermos juntos, ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não fabriquem nações proletárias num mundo, cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres, saírem de sua miséria”.

O Pacto propunha também uma mudança radical das relações entre os bispos e os leigos e leigas, sacerdotes e religiosos/as:

“Comprometemo-nos a partilhar na caridade pastoral, nossa via com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosas e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço. Assim:

- esforçar-nos-emos para “revisar nossa vida com eles”;
- suscitaremos colaboradores para serem mais animadores, segundo o Espírito, do que chefes, segundo o mundo;
- procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;
- mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião”.

IHU On-Line – A partir da assinatura do Pacto, qual a relação de Dom Helder com a Teologia da Libertação?

José Oscar Beozzo – Em relação à Teologia da Libertação, Dom Helder instaurou em sua vida e em sua ação pastoral local e internacional, práticas profundamente libertadoras. Tanto no Concílio, como de modo particular em Medellín e Puebla, foi um dos inspiradores e realizadores da opção preferencial pelos pobres.

Sua prática libertadora serviu de inspiração e estímulo à reflexão teológica, e seu Instituto Teológico em Recife, o ITER, foi um dos principais laboratórios e centros de produção de uma teologia da libertação colada à prática das comunidades eclesiais de base e aos movimentos populares.

Dom Helder foi um bispo e um pastor da libertação, não se considerando ele mesmo um teólogo, e sim um inspirador e animador da reflexão teológica libertadora.

Fonte: UNISINOS

Zildo Rocha

Hélder Câmara: o Dom
Por: Graziela Wolfart

O pernambucano Zildo Barbosa Rocha teve o privilégio de conviver durante alguns anos com Dom Hélder Câmara e conta, na entrevista que segue, o que guarda de mais significativo dessa experiência. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, ele relata detalhes sobre a personalidade e sobre o legado de Dom Hélder para a Igreja. Zildo Barbosa Rocha estudou no Seminário de Olinda. É licenciado em Filosofia e Teologia, pela Universidade Gregoriana de Roma, onde foi ordenado sacerdote em 1958. Exerceu durante 12 anos o ministério presbiteral quando, entre outras, desempenhou as funções de reitor do Seminário Regional do Nordeste e de diretor do Instituto de Teologia do Recife - ITER. A partir de 1970, voltou à vida civil e ingressou no serviço público, onde exerceu cargos de chefia e de direção na Sudene e na Secretaria de Finanças do Estado de Pernambuco. É casado e pai de três filhos. Aposentou-se em 1990 e, em 1991/1992, passou um ano e meio na Inglaterra, onde fez, no Missionary Institute London-MIL um ano sabático de atualização teológica, nas áreas de Eclesiologia e Cristologia. Foi coordenador do Centro Dom Hélder Câmara – CENDHEC, onde, atualmente, atua no projeto de edição de suas Obras Completas. É autor de Hélder, o Dom (Petrópolis: Vozes, 1999).


IHU On-Line - O senhor foi um das pessoas que acompanhou Dom Hélder. O que guarda de mais significativo da convivência com ele?

Zildo Rocha - Minha convivência com Dom Hélder se deu, basicamente, em dois períodos: de 1964 a 1970 e de 1990 a 1999, ou seja, nos seis primeiros e nos nove últimos anos de sua permanência entre nós no Recife. No primeiro período (64-70), essa convivência foi mais de natureza institucional. Encontrávamo-nos, quase sempre, para tratar de assuntos ligados à Arquidiocese, particularmente ao Seminário Regional de que eu fui de 65 a 69, sucessivamente, vice-reitor e reitor, e ao Instituto de Teologia, de que fui diretor em 68 e 69. No segundo período (90-99), ele já era arcebispo emérito e eu funcionário aposentado da Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco. Reencontrei-o, depois de uma longa história, que não cabe relatar aqui, quando ele já sentia o peso da idade e ensaiava o seu grande final, na campanha “Ano dois mil sem miséria”.

Ouvia-o, então, repetir, à exaustão, seu sonho de que a humanidade iniciasse o novo milênio sem a mancha negra da miséria “insulto e ofensa ao Criador e Pai”. Participei assim, como coordenador do Centro Dom Hélder Câmara - CENDHEC, do planejamento, lançamento e eventos iniciais daquela campanha, que logo depois foi secundada pela Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, lançada nacionalmente pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.

Posso dizer, também, com alegria, que o acompanhei, de perto, nos anos cinzentos em que a velhice, a dor de ver migrarem para longe suas “utopias peregrinas” e o abatimento, nunca consentido, por ver seu trabalho na Arquidiocese incompreendido e desmontado, o fizeram passar “à terceira margem do rio” ou a entrar na canoinha de silêncio e contemplação em que passou seus últimos anos.

Agora, respondendo à sua pergunta, poderia repetir o que escrevi no pósfacio de um livro que organizei sobre Dom Hélder, intitulado “Hélder, o Dom”: “De todas as lembranças de minha convivência com Dom Hélder, a que guardo com maior carinho na memória do coração é a palavra que me disse, quando fui comunicar-lhe a decisão de ‘deixar a batina’, como então se dizia. Ele me disse: ‘A confiança que tenho em você é tanta, que nem precisa dizer-me as razões que o levaram a tomar tal decisão’”.

Aquelas palavras caíram sobre mim como um bálsamo, num momento de grande tensão e angústia. Mas seu real significado eu só vim descobrir depois, quando ouvi de outro colega, que passou por situação semelhante, o depoimento de atitude idêntica, por parte do Dom. Ficou, então, claro para mim que o que me dissera naquela ocasião, antes de ser uma declaração generosa sobre a qualidade de nosso relacionamento, era, antes, a manifestação natural e espontânea de seu respeito às consciências e às suas decisões. E esta foi para mim uma das mais preciosas lições de seu ministério.

IHU On-Line - Em que sentido a vida de Dom Hélder reflete a essência do Evangelho?

Zildo Rocha - No texto a que há pouco me referi, resumi o que me parece o essencial da vida religiosa de Dom Hélder e o legado espiritual que deixou às futuras gerações. Dom Hélder era, antes de tudo, um homem religioso. Com razão foi escolhido em pesquisas feitas no Brasil, na virada do milênio, como “o religioso do século”. Sua religiosidade consistia basicamente em levar a sério e viver em profundidade algumas verdades, simples e basilares, do credo cristão:

- Deus é Criador e Pai;
- Jesus é o primogênito entre os irmãos;
- Maria é a mãe de Jesus e nossa mãe;
- A humanidade é toda ela uma grande família, da qual todos, sem exceção, fazemos parte;
- A imensa família humana se estende e complementa noutra, dos espíritos angélicos, que lhe oferece companhia fraterna, ajuda e proteção;
- O ato central de encontro da família humana e angélica com o Criador e Pai é a Santa Missa, compreendida não como o ritual mágico de uma seita particular, mas como ato cósmico e universal em que o Homem Deus Jesus Cristo, Sacerdote da Criação, recapitula e consuma em si todas as coisas, levando-as, no Espírito, de volta para o Pai.

É impossível compreender a vida de Dom Hélder fora desse credo referencial básico. Da experiência do Criador e Pai, ele extraiu uma intimidade de amor e submissão a Deus e uma quase espontânea paixão pelo Universo que o enchiam de confiança e de otimismo: uma crença no projeto da criação e no progresso humano; um encantamento pela Natureza, uma ternura pelas plantas e pelos animais, com quem, embora homem visceralmente urbano, ele se comunicava amiúde, nas asas da imaginação e da contemplação, como disso dão prova os poemas-meditações que rascunhava ao longo de seus dias e passava à secretária, e em suas vigílias; e toda a sua ação pastoral estava voltada para a realização da fraternidade entre os homens.

Dom Hélder transpirava essas verdades e as irradiava à sua volta nos mais comezinhos gestos do dia-a-dia: na maneira como tratava quem quer que dele se aproximasse; quando apontava para o céu ao ser chamado de senhor; quando, em meio a conversas as mais informais, saudava com um gesto de carinho a imagem de Maria posta sobre um móvel, ou afixada numa parede; quando pedia ajuda, ou simplesmente expunha a seu anjo da guarda, a quem carinhosamente chamava de José, as dificuldades em que se encontrava; ou ainda quando na Missa tomava nas mãos rindo ou, às vezes, chorando, o pão e o vinho, como se visse Jesus ali, encoberto sob aquelas frágeis e humildes espécies.Tudo o mais, em sua vida, parece decorrer da experiência profunda dessas simples e essenciais verdades, vividas por ele, de maneira intensa.

IHU On-Line - Qual a contribuição de Dom Hélder na luta em prol dos Direitos Humanos e do resgate da cidadania brasileira?

Zildo Rocha - A toda hora, em sua ação pastoral e em seus escritos (cartas, discursos e poemas-meditação), Dom Hélder se reportava ao homem, ao humanismo, ao desenvolvimento integral (“do homem todo e de todos os homens”), aos valores humanos, ao desrespeito frequente dos direitos fundamentais da pessoa, gerando situações de grande e mesmo de extrema injustiça. Era-lhe constante a preocupação com a miséria que atinge dois terços da população do globo, que considerava “uma tremenda afronta ao Criador e Pai”. Sabia e não perdia a ocasião de salientar que a ideologia dos Direitos Humanos, quando se torna leis e estatutos, se constitui, sem dúvida, em meio de eficácia para a transformação de situações de injustiça.

Mas não lhe passava despercebido que tal ideologia, gerada no âmbito do Estado Liberal, se volta bem mais para a salvaguarda dos direitos dos indivíduos, sendo facilmente manipulável pelos interesses das classes dominantes e, não raro, usados mais como entrave do que como garantia e preservação dos interesses da coletividade. E sabia, também e, mais ainda, que tal ideologia, para ser efetivamente usada como instrumento de transformação, precisa ser acionada por uma energia e uma força que, em sua visão e concepção cristãs, se situam para além das forças puramente naturais e necessitam do apoio da fé e da graça divina.

Como diz em um de seus discursos, os Direitos Humanos, antes de serem “um presente dos ricos ou dos governos para os segmentos pobres das populações, são uma consequência da Criação de Deus e, por isso, uma doação divina. A melhor maneira, portanto, de alguém guardar e defender seus direitos é a de assumir-se como criatura humana, filho ou filha de Deus”.

IHU On-Line - De que maneira Dom Hélder Câmara marcou os rumos da Igreja no Brasil?

Zildo Rocha - São inegáveis os frutos da ação de Dom Hélder na Igreja do Brasil e mesmo em algumas partes do mundo. Sem querer dar a impressão de estar fazendo propaganda do livro que, em 1999, me coube organizar para festejar os seus noventa anos, acho que ali se encontra uma boa resposta à pergunta sobre quem foi Dom Hélder e qual a sua contribuição à Igreja do Brasil. A importância da ação de Dom Hélder transparece, ali, no depoimento de vinte e cinco personalidades do Brasil e do Exterior, onde é apontado, de maneira viva e pessoal, como Amigo de fé, Colega, Irmão; Modelo de bispo do Vaticano II; Voz profética dentro da Igreja, e Profeta para o mundo.

Acho que a maneira como o Dom se faz ainda hoje presente entre nós é através da imensa obra escrita que nos legou, particularmente nas cartas que escreveu a seus colaboradores, a quem chamava de Família Mecejanense. São, ao todo, cerca de duas mil e duzentas cartas, escritas, ao longo de vinte anos. No próximo dia 14 de abril, a Companhia Editora de Pernambuco - CEPE estará lançando seiscentas dessas cartas, em dois volumes de três tomos cada um. O primeiro volume contém as Cartas Conciliares, assim chamadas porque escritas em Roma, durante as quatro Sessões do Concílio Vaticano II.

O segundo, das Cartas Interconciliares, contém as cartas escritas, no Recife, entre as três últimas Sessões do Concílio (11 de abril de 1964 a 01 de setembro de 1965) aos seus ex-colaboradores do Rio de Janeiro e novos colaboradores de Olinda e Recife. Tive o privilégio de preparar para a publicação, com a ajuda de um pequeno grupo, este volume das Cartas Interconciliares e posso assegurar-lhe que se trata de um documento ímpar da história da espiritualidade católica. Nelas, um cristão autêntico, um grande bispo, um dos Pais da Igreja latino-americana, aceita o desafio de despir-se espiritualmente diante de Deus e de sua Igreja familiar e doméstica, diariamente ou quase, confessando e narrando, com simplicidade e transparência, a “história de sua alma” e as vicissitudes de seu dia-a-dia.

Tenho insistido em afirmar, junto ao Instituto Dom Hélder Câmara, que a tarefa que lhe incumbe prioritariamente, agora que nos falta a presença física do profeta, é a de publicar e divulgar, o quanto antes, sua obra escrita que, além da maravilhosa correspondência a que me referi, consta, ainda, de centenas de discursos, abordando temas de grande atualidade, e milhares de pequenos poemas - meditação. Tenho, mais que a esperança, a certeza de que o Dom continuará a marcar a sua presença entre as futuras gerações, através de sua obra escrita e da irradiação do seu testemunho.

IHU On-Line – Dom Hélder dizia: “Sempre que procura defender os sem-vez e os sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política”. Em que sentido o senhor vê nas ações de Dom Hélder um exemplo para a ação da Igreja na sociedade?

Zildo Rocha - Dom Hélder era um homem de equipe. Aprendeu com a Ação Católica que ajudou a criar ou, pelo menos, a implantar no Brasil, sob o modelo da Ação Católica Especializada e segundo o método do Ver, Julgar e Agir. Acreditava no diálogo e considerava a autoridade um serviço e não um poder. Tinha profundo respeito por seus colaboradores e mais de uma vez o vi rasgar textos que preparara porque o seu “presbitério alargado” (vigários gerais, padres e alguns leigos) não o considerara convincente ou oportuno. Tinha um verdadeiro amor preferencial pelos pobres. Não por demagogia, como gostavam de repetir seus adversários, mas para sentir-se mais verdadeiro consigo mesmo, mais próximo desses irmãos frágeis e esquecidos, e mais fiel àquele de quem procedia todo o seu poder e autoridade e que não tinha onde reclinar a cabeça.

A leitura de suas cartas ajudará, de certo, a perceber como entendia a sua função de bispo e a queria a serviço de seus irmãos nordestinos, martirizados pelo subdesenvolvimento, pela miséria e pela fome. Para ele, como para São João, o amor de Deus e o amor do próximo é um só e mesmo amor. E isso, de novo, não por caudilhismo ou demagogia, mas como fruto de uma ação que nascia da oração, da Vigília e da Santa Missa, pontos altos de seus dias.

Fonte: UNISINOS

6 de abr. de 2009

José de Broucker

Dom Hélder Câmara : místico, fraternal, servidor fiel

Jornalista, o francês José de Broucker foi amigo de Dom Hélder Câmara por três décadas. Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele relembra o tempo que conviveu com o arcebispo de Recife e revela admiração profunda pelo brasileiro de ideias liberais que ajudou a construir uma Igreja diferente. Numa fórmula breve, Broucker define o que qualifica como a complexidade paradoxal de Dom Hélder : “ três pessoas em um só homem : homem de Deus, homem do mundo e homem da Igreja”.

Ao lembrar do amigo, ele diz que “ Dom Hélder despertou numerosos engajamentos por um mundo mais justo e mais humano”. Neste ano em que comemoramos seu centenário de vida, “ele ainda está mais eloquente em seus escritos”. Sua mensagem ainda está viva e “a visão e os engajamentos que ele trabalhava para promover são vividos hoje por quantidades de organizações de sociedades civis em um número muito grande de países, inclusive na América Latina e no Brasil ”.

Seus escritos, continua, “dos quais muitos ainda estão para ser publicados, constituem uma herança extremamente preciosa para as gerações atuais e futuras”.
Biografo de Dom Hélder Câmara, José de Broucker escreveu diversas obras, entre as quais destacamos "As noites de um profeta. Dom Hélder Câmara no Concílio do Vaticano II "(São Paulo : Paulus, 2008). O autor é presidente da Associação Dom Hélder – Memórias e Atualidade, e diretor das Informações Católicas Internacionais no Tempo do Concílio. Por: Patricia Fachin, 06/04/2009.



IHU On-Line – O senhor conviveu com Dom Helder aproximadamente 30 anos. A partir dessa convivência, como descreve a personalidade humana e cristã de Dom Hélder Câmara?

José de Broucker - Tenho o hábito de expressar em uma fórmula a complexidade seguidamente paradoxal de Dom Hélder: três pessoas em um só homem: homem de Deus, homem do mundo e homem da Igreja. Por assim dizer: místico, fraternal, servidor fiel.

IHU On-Line – Como a trajetória de Dom Hélder nos ensina e repensar a Páscoa hoje? O que a mística desse momento revela sobre o espírito de Dom Helder Câmara?

José de Broucker - A invencível e comunicativa esperança da qual Dom Hélder testemunhou em todas as circunstâncias não me parece sem relação com sua fé na ressurreição do Senhor: “Quanto mais negra é a noite, mais brilhante será a aurora.” Nem sem relação com sua atenção privilegiada aos pobres: “Não cabe aos pobres compartilhar da minha esperança, mas a mim de compartilhar da esperança dos pobres.”

IHU On-Line – Em que sentido as ideias liberais e libertadoras de Dom Hélder Câmara podem servir como fonte de energia para novas ações na sociedade, considerando também esse momento de crise (capitalista, institucional, de valores) que vivemos?

José de Broucker - Durante a sua vida, por todos os lugares onde passava e falava, Dom Hélder despertou numerosos engajamentos por um mundo mais justo e mais humano. O que ele chamava de “minorias abrahâmicas” que exercem “pressões morais libertadoras” sobre as estruturas de poder estão cada vez mais presentes e ativas. Hoje, Dom Hélder não está mais aqui. Mas ele está ainda mais eloquente em seus escritos do que em suas conferências. Aos atores sociais que são tentados pelo desânimo diante dos desafios da história, recomendo a leitura de suas Cartas Circulares conciliares e Interconciliares, de suas Meditações do Padre José, de suas alocuções radiofônicas. São inesgotáveis reservatórios de energias renováveis!

IHU On-Line – O senhor conheceu Dom Hélder na cobertura do Concílio Vaticano II. O que motivou a amizade entre vocês? Pode nos contar um pouco sobre os elos que os uniram durante três décadas?

José de Broucker - Meu primeiro encontro prolongado com Dom Hélder data de 1968, quando fui a Recife para realizar uma pesquisa-retrato do “arcebispo das favelas” a pedido de um editor parisiense (La violence d’un pacifique) [A violência de um pacífico]. Este encontro me fascinou, mas não esgotou a minha curiosidade de jornalista e de cristão: quarenta anos mais tarde, eu a persigo de todas as formas e maneiras. Também colaborei com a edição francesa de vários de seus livros, desde os anos 70. De sua parte, Dom Hélder me concedeu a sua confiança e me pediu para ser, de alguma forma, uma “antena” na França, notadamente para preparar e acompanhar suas viagens: eu era, de certa forma, com minha mulher e meus filhos, uma modesta “peça trazida” da “Família Mecejanense”.

IHU On-Line – Qual a principal contribuição de Dom Hélder para o Concílio Vaticano II?

José de Broucker - Como observou P. Congar, Dom Hélder tinha uma qualidade “tão rara em Roma”: uma visão. Uma visão do mundo – que não é somente europeu e rico, e uma visão da Igreja – servil e pobre, colegial, participativa, ecumênica no sentido mais amplo do termo. Esta visão estereoscópica, ele soube dividir, de minoria em minoria episcopal, até que ela fosse, em seus pontos mais importantes, a da maioria. Uma outra contribuição foi a de despertar e entreter um diálogo entre a assembleia conciliar e a opinião pública, pelo número de vezes que ele falou em público fora dos muros da Basílica de São Pedro.

IHU On-Line – De que maneira o pensamento de Dom Hélder permanece vivo ainda hoje? Que heranças o sacerdote deixou na Europa, onde esteve mais de 30 vezes?

José de Broucker - Na França e talvez na Europa, as mais antigas gerações guardam de Dom Hélder lembranças vivas e lamentos: lamentos de não mais poderem se ouvir interpelados por vozes tão livres e libertadoras. Mas, se ainda são raras as pessoas e os grupos que solicitam Dom Hélder, a realidade é que a visão e os engajamentos que ele trabalhava para promover são vividos hoje por quantidades de organizações de sociedades civis em um número muito grande de países, inclusive na América Latina e no Brasil. E, de maneira muito concreta, considero que seus escritos, dos quais muitos ainda estão para ser publicados, constitui uma herança extremamente preciosa para as gerações atuais e futuras.

IHU On-Line – Dom Hélder era conhecido como um homem de vários dons. Para o senhor, é possível destacar uma qualidade imprescindível do arcebispo de Recife?

José de Broucker - Sua preferência por convencer mais do que vencer, e a arte com a qual ele sabia colocar em prática, sem nunca separar verdade e bondade.

IHU On-Line – Como os ensinamentos de Dom Hélder podem ajudar a construir uma nova Igreja? Para o senhor, na visão de Dom Hélder, que mudanças seriam cruciais na Igreja de hoje?

José de Broucker - Após Dom Hélder, eu diria: que ela aplique a si mesma os belos princípios que prega, tanto em nome do Evangelho como do direito natural.

Fonte: UNISINOS

Pe. Geovane Saraiva

Dom Helder, o místico



O místico é profundamente marcado pela graça de Deus com dons e talentos colocados a serviço do próximo. É alguém totalmente voltado para Deus e para a realidade com os pés firmes no chão, com grande capacidade de perceber, de modo lúcido, os desafios, as exigências e as dificuldades de seu tempo, com enorme vontade de superá-las.

Karl Rahner, sacerdote jesuíta, nascido na Alemanha, que viveu de 1904 a 1984 e foi um dos maiores e mais importantes teólogos do século XX, marcou forte presença, nem sempre bem compreendido, com os seus dons e inteligência privilegiada, como assessor do Concílio Vaticano II. Desempenhou, também, papel de destaque, incentivando a Igreja Católica para que se abrisse ao mundo e às diversas tradições e dizia, com a coragem profética que lhe era peculiar, que o cristão do futuro será um místico ou não será nada.

O místico é aquela pessoa que sabe conviver e dialogar com todas as pessoas do mundo inteiro. Numa palavra, místico é o cidadão do Planeta, o cidadão universal, consciente de que o diálogo é uma arte que deve ser cultivada com sinceridade e paciência através da palavra, da conversa, do colóquio e da comunicação.

Dom Helder Câmara era, antes de tudo, um místico. Assim o definiu o nosso grande teólogo, Padre José Comblin. Como místico, tornou-se conhecido no Brasil e no mundo inteiro por sua luta em favor da humanidade, especialmente, dos desafortunados da vida, dos empobrecidos e dos "sem voz e sem vez".

Sua vida foi uma obra de arte, pela simplicidade de viver, conviver e dialogar, indo ao encontro de todos e amando-os indistintamente. Assim dizia Mahtma Gandhi: "A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte". Certamente Dom Helder teve suas contradições, suas limitações e seus erros, mas, segundo Roosevelt, "o único homem que não erra é aquele que nunca fez nada". Deus foi mais forte e sua bondade sem limites fez dele um belo instrumento de seu amor e de sua paz.

Místico é, pois, alguém que sabe experimentar o amor de Deus Pai e Criador, que inicia bem suas atividades, que é perseverante e que vai até o fim... Dom Helder, profeta e místico, foi assim e sintetiza a vida com o seguinte pensamento: É graça divina começar bem, graça maior é persistir na caminhada, mas a graça das graças é não desistir nunca...

Fonte: Site da Paróquia Santo Afonso, Fortaleza-CE



Ano Dom Helder Camara - PUC/Rio

Ano Dom Helder Camara - PUC/Rio
Clique na imagem e visite esse lindo site!

100 anos de Dom Helder Câmara - O guerreiro da Paz

100 anos de Dom Helder Câmara - O guerreiro da Paz
Clique na imagem e conheça o site lançado pela PUC-RJ para lembrar os 100 anos do nosso querido Dom.

Dom Hélder - 100 anos

Dom Hélder - 100 anos
Clique na imagem e visite site sobre a vida, filosofia, homenagens e reportagens sobre Dom Hélder Câmara.

Livro

Livro
Titulo: O Peregrino da Paz - Dom Helder Autor: Pe Geovane Saraiva e Prof. Cajuaz Filho Editora: Celigráfica Essa obra reúne em 130 páginas um resumo de Dom Helder Câmara como menino, padre e bispo, suas mensagens e pensamentos, além de fotos, artigos e depoimentos de pessoas que o admiram. A idéia é mostrar a importância que o arcebispo teve para o mundo, como “Peregrino da Paz”, e como figura fundamental na luta pelas grandes causas humanas. Essa publicação ocorre num momento solene em que todo o mundo, ainda, festeja o sexagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, direitos que, tão intrépida e corajosamente, Dom Helder defendeu. Não é mais um livro sobre Dom Helder. É o livro comemorativo de seu primeiro centenário. Eis a diferença. Dom Helder jamais se intimidou com ameaças, partissem de onde partissem, pois sua força vinha daquele em que sempre acreditou - Jesus Cristo - razão de sua vida sacerdotal e de sua missão que sempre foi anunciar o Evangelho, pregar a paz e lutar contra a miséria.

Dom Helder Camara - O Santo Rebelde

Dom Helder Camara - O Santo Rebelde
Documentário de Erika Bauer sobre Dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, morto em 1999. O filme enfoca desde sua participação como figura central da ala progressista da Igreja Católica, na década de 1950, criando a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), até suas ações durante a ditadura militar.